24 de fev. de 2011

CORPO DO SERMÃO DA MONTANHA: A piedade autêntica (Mt 6, 1-18)


Esta secção do corpo do sermão fala das práticas que estruturam a piedade judaica e cristã - a esmola, a oração e o jejum - realçando a importância da nossa disposição interior na prática. Inicia-se com uma tese em Mt 6, 1: “Guardai-vos de fazer as vossas boas obras (…) para serdes notados (…)” As boas obras referem-se à justiça, que se deve manifestar na fidelidade à observância das três práticas. A tese é ilustrada em seguida, numa explicação de como nos devemos comportar quando damos esmola, oramos ou jejuamos. O Pai Nosso é mais do que apenas parte da explicação da oração: este ocupa o centro do Sermão, pois esclarece ao mesmo tempo a parte que o precede – a nova justiça – sobre o horizonte da vontade do Pai, que se segue – o chamamento a uma confiança filial.

A esmola (Mt 6, 2-4)
A esmola deve ser praticada no segredo, não procurando uma recompensa no reconhecimento social, mas procurando sim e só a apreciação do Pai.
A esmola também era denominada de justiça pelos sábios judeus, tendo o valor do sacrifício que apaga os pecados aos “olhos” de Deus (Tb 12, 8-9).
A palavra “hipócrita” refere-se à pessoa cujos actos não correspondem ao seu pensamento.

A oração (Mt 6, 5-8)
A oração deve ser simples e humilde, sem ostentar a piedade, procurando ser notado, e sem repetições de fórmulas que teriam a intenção de pressionar a divindade, como era feito em muitos cultos pagãos. A oração deve ser discreta e de total entrega a Deus.
O jejum (Mt 6, 16-18)
O jejum era praticado no AT, muitas vezes, como forma de luto e como forma de se reconhecer pecador (Lv 16, 29-31). Mas quem o faz deve mostrar sinais de alegria e não mostrar o seu sofrimento, procurando assim uma exibição de ascetismo, para ter a admiração de outros.

A ideia-chave da abordagem das três práticas de piedade é a de que, se procurarmos a nossa recompensa na visibilidade dos outros, já a recebemos com o reconhecimento social. Assim, a piedade que exercemos não é autêntica: só o é quando a prática é feita em segredo, um segredo entre nós e o Pai. Jesus recomenda, assim, a verdade e a unidade interior da pessoa na manifestação da piedade.

O Pai-Nosso (Mt 6, 9-15)
Embora as orações mais apreciadas fossem as orações de louvor, Jesus ensina os seus discípulos a pedir, pois o Pai-Nosso é uma oração de súplica dirigida ao Pai. Porquê? Porque aquele que reza o Pai-Nosso descobre que não vive apenas do que produz, e que o seu destino não depende só de si, mas antes daquele que dá: Deus. O crente pode pedir na maior e total confiança porque Deus Pai dá sem discrição e sem medida, porque ama-nos como um Pai ama os seus filhos. Lendo, frase a frase:

“Pai nosso, que estás no Céu,”
Esta afirmação não pretende localizar Deus, mas dizer que o Senhor do Céu está, simultaneamente, perto de nós.

“santificado seja o Teu nome”
Expressa o desejo de que se manifeste para Deus o que lhe é de direito: a glória, a obediência, a justiça e a santidade.

“Venha o Teu Reino”
Ansiar pelo Reino de Deus faz parte da consciência do discípulo, deve ser o seu desejo interior.

“Faça-se a Tua vontade, como no Céu, assim também na terra.”
É uma acção de Deus que nos envolve. O Reino do Céu requer a nossa adesão à vontade de Deus, primeiro, ao cumprir os mandamentos, mas futuramente, na concordância pela da nossa vontade com a vontade divina. Não é uma atitude de resignação, mas um apelo a que a vontade de Deus se realize na terra.

“Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia;”
Tal como será dito adiante, em Mt 6, 25-34, esta frase exprime a nossa confiança total e filial no Pai.

“perdoa as nossas ofensas, como nós perdoámos a quem nos tem ofendido;”
Exprime o reconhecimento de que somos pecadores, de que necessitamos do perdão e da graça de Deus, mas este perdão está intimamente ligado ao perdão para com o próximo, pois este é um testemunho da sinceridade do nosso pedido e da nossa oração.

 “e não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do Mal.”
A tentação aqui é abordada como sendo a prova em que o poder do Mal procura perder o discípulo, pelo que se pede a ajuda do Pai para vencer a tentação e não se perder no caminho.

A versão do Pai-Nosso de Lc 11, 2-4 é mais breve, tendo apenas cinco petições (em oposição a sete na versão de Mateus), mas ambas têm como pontos fundamentais e comuns a simplicidade e a confiança filial com que Jesus nos ensina na invocação e no diálogo com Deus Pai.


11 de fev. de 2011

CORPO DO SERMÃO DA MONTANHA: A nova justiça (Mt 5, 17-48);


O conjunto do Sermão apresenta a interpretação cristã da Lei e os Profetas, expressão esta que abre esta parte do Sermão (5, 17) e a conclui (7, 12). Ao ler o Corpo do Sermão da Montanha, encontram-se três quadros principais desta interpretação:
1)      um desenvolvimento sobre a nova justiça do Reino (5, 17-48);
2)      uma apresentação da piedade autêntica (6, 1-18);
3)      exortações acerca da confiança para com o Pai (6, 19 – 7, 11).

Mt 5, 17-48, que se refere à nova justiça do Reino, compreende uma tese, apresentada em Mt 5, 17-20, ilustrada por seis antíteses entre a Antiga e a nova Lei.


TESE: Jesus e a Lei (Mt 5, 17-20)

Esta tese tem como objectivo, atingir os mestres e os fiéis da comunidade de Mateus., que negligenciam alguns mandamentos, usando uma distinção antiga entre preceitos “leves” e “pesados”. A justiça dos discípulos e a sua prática dos mandamentos deve ir além da dos escribas e fariseus. Jesus vem, assim, dar a perfeição à Lei e os Profetas, sem as revogar, restituindo-lhes a sua simplicidade original. A menção do “jota” (a letra mais pequena dos alfabetos hebraico e grego) e do “ápice” (pequeno traço com a função distinguir as letras), símbolos aparentemente quase insignificantes na interpretação do texto, aparecem como uma hipérbole para frisar que a Lei será respeitada por Jesus na sua integridade, até ao pormenor.

1ª ANTÍTESE: Homicídio e reconciliação (Mt 5, 21-26)

À condenação do homicídio no AT, Jesus opõe a denúncia da fúria e do insulto como sendo graves, pois eles originam os comportamentos violentos. Duas aplicações completam a mensagem: a reconciliação entre irmãos tem mais importância do que os rituais do culto, pois esta conduz à paz e evita a violência, que nos afasta do amor; alimentar os conflitos, não sendo conciliador, leva a consequências futuras, podendo desarmar-nos perante o julgamento divino final. Nesta conclusão, revê-se o programa das Bem-aventuranças: Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra.

 NOTA: A Geena era um vale a sul de Jerusalém no qual se sacrificou ao deus Moloc e onde, mais tardiamente, se lançava o lixo da cidade, pelo que se tornou uma referência como símbolo de maldição eterna.

2ª ANTÍTESE: Adultério e escândalo (Mt 5, 27-30)

Nesta passagem, Jesus opõe a proibição do adultério à inveja e cobiça. O desejo de algo que não é nosso é o caminho para o adultério ou para roubar. Jesus põe, assim, em paralelo o “olho”, canal das intenções, e a “mão”, passagem ao acto, colocando na mesma linha de exigência actos, pensamentos e desejos. Renunciar antes de sucumbir a uma situação irreparável, esse é o projecto que Jesus dá aos seus discípulos: converterem o seu interior, serem puros de coração. 

3ª ANTÍTESE: Jesus e o divórcio (Mt 5, 31-32)

Esta antítese completa a precedente, referindo-se ao adultério conjugal. O divórcio era o direito que o homem tinha de repudiar a sua mulher, segundo as leis do AT, em caso de adultério. Aqui, é acentuada a indissolubilidade da união conjugal: o casamento é um projecto divino que não pode ser substituído por outra união. Também, nesta passagem, procura realçar-se que a ruptura conjugal é responsabilidade de ambas as partes, ao contrário do que se defendia na sociedade patriarcal judaica: em oposição ao princípio de que apenas a mulher era considerada adúltera, o fim do versículo 32 atesta que o homem também é adúltero ao repudiar a sua esposa.

4ª ANTÍTESE: Linguagem e juramentos (Mt 5, 33-37)

Jesus alerta para os falsos juramentos: os que são feitos com o propósito de tomar Deus como testemunha nos conflitos, para provar boa fé diante de outros; os votos pelos quais alguém se compromete para com Deus em promessas inconsideradas. A simplicidade do “sim” e do “não” compromete os discípulos a uma transparência que deixa a Deus a avaliação da verdade de cada um. A interdição do falso juramento procura, assim, assegurar a verdade das relações entre discípulos e entre estes e Deus.

5ª ANTÍTESE: Lei de talião (Mt 5, 38-42)

O verbo “resistir” é usado com o sentido de replicar, tirando vingança de dada situação, usando a lei do Talião como forma de justificar o acto vingativo. Muitas vezes, o golpe de “vingança justa” nada mais faz do que desencadear uma reacção de violência em cadeia. Para referir como acabar com este ciclo, Jesus faz quatro comentários que indicam a conduta a ter: mostrar a outra face, desarmando a violência; ceder o que se tem a quem precisa; indicar o caminho e acompanhar incansavelmente; não se afastar de quem precisa de ajuda. Jesus vem renovar a lei do Talião, indicando aos discípulos o caminho das obras de misericórdia, que vão ser referidas adiante (Mt 25, 34-36).

6ª ANTÍTESE: Amor aos inimigos (Mt 5, 43-48)

Jesus corrige com o amor cristão a mentalidade de aversão aos pecadores. O amor universal é condição para o discípulo se tornar filho do Pai do Céu, amando os bons e os maus, justos e pecadores. A recompensa não é material, mas é a que vem da bondade gratuita de Deus, que não exclui ninguém do Seu amor. Jesus enuncia um mandamento espantoso: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Amar os inimigos, é orar por eles, para que mudem, se essa for a intenção de Deus. Trata-se de “imitar” Deus, como o filho que procura imitar o pai, sendo perfeito como é perfeito o Pai celeste. Esta perfeição traduz-se por uma misericórdia infinita. A justiça nova do Reino ultrapassa de longe a lógica do “dar para receber em troca”: o amor dos discípulos deve ser um amor universal e perfeito, sem limites.


8 de fev. de 2011

1ª PARTE (cont.) - SERMÃO DA MONTANHA (caps. 5-7)


O Kérygma ou o grito do arauto que proclama a notícia é o primeiro anúncio da mensagem, introduzido por João Baptista e proclamado por Jesus. Lemo-lo no capítulo anterior, na pregação do Reino e resposta dos discípulos. Uma vez que os ouvintes aderiram ao Kerygma, o Sermão da Montanha vem como catequese para completar a sua instrução. Destinado aos recém-convertidos que foram alcançados pela mensagem e chamamento de Cristo, apresenta um novo programa de vida para o futuro. É o discurso inaugural da nova Lei do Reino. Trata da nova justiça cristã, proclamando o Reino de Deus, revelado nos milagres que são descritos seguidamente. Este Sermão é um apelo de Jesus a quem deseja segui-l’O, feito em confronto com a Antiga Aliança.
As Bem-aventuranças resumem e sintetizam o anúncio da Boa-Nova, cujos frutos surgem no decurso do Evangelho, nas mudanças que Jesus opera sobre os pecadores, os enfermos e em todos os que vai encontrando. É uma experiência de vida a ser levada por aqueles que aceitaram seguir Jesus, não sendo uma lei mas uma proposta de vida nova da qual somos convidados a participar.

O Sermão da Montanha apresenta uma estrutura com a seguinte divisão:

      1) Exórdio: anúncio da Boa-Nova
- As Bem-aventuranças (5, 3-12);
- O Sal e a Luz (5, 13-16);

      2) Corpo do Sermão:
- A nova justiça (5, 17-48): o que significa, no comportamento quotidiano, fazer a experiência da Boa-Nova;
- A piedade autêntica (6, 1-18): com que espírito se deve cumprir as boas obras tradicionais quando se é Filho de Deus;
- Confiança para com o Pai (6, 19 – 7,12)
     
      3) Conclusão do Sermão (7, 13 – 27): quem é discípulo e como deve sê-lo.


Exórdio: As Bem-aventuranças (Mt 5, 3-12)

As Bem-aventuranças desenvolvem uma doutrina para quem já está no caminho. Acentuam as disposições interiores necessárias para acolher o Reino de Deus e são uma introdução ao catecismo para os cristãos. As exigências são difíceis, mas recompensadoras para os discípulos que já sabem que se trata da sua felicidade. As oito Bem-aventuranças constituem um todo, que se abre e fecha com a mesma expressão esclarecedora (“porque deles é o Reino do Céu”, v. 3. e v.10).
A expressão “Felizes” é usada na Bíblia quando se pretende felicitar alguém por um dom recebido ou anunciar uma alegria. Com o uso desta expressão, Jesus indica quais os discípulos que estão em condições mais favoráveis para receber o Reino de Deus. Esta palavra implica ao mesmo tempo uma felicitação para com quem marcha já no bom caminho, e um programa de vida que, no fim, será recompensado por Deus.

As Bem-aventuranças podem dividir-se em dois blocos:
1º bloco (v. 3-9): dedicadas à pobreza e atitude de confiança para com Deus;
2º bloco (v. 10-12): sobre a perseguição, orientando um comportamento.

1º Bloco

Felizes os Pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu.
 Pobres em espírito” ou “pelo espírito” são aqueles que, mediante as provações de ordem material e espiritual, aprenderam a confiar apenas em Deus. A pobreza interior é condição para entrar no Reino e implica uma atitude de humildade, pela qual o crente recusa dominar os seus irmãos e fia-se em Deus para assegurar os seus direitos.

Felizes os que choram porque serão consolados.”
Os que choram” são aqueles que não perdem a esperança no Senhor. São felizes pois, em suas provas, mantêm-se fiéis e confiantes no conforto de Deus.

Felizes os mansos, porque possuirão a terra.”
Os mansos” têm uma ligação estreita com a pobreza. Jesus apresenta-se como manso em Mt 11, 29, e requer a aprendizagem desta atitude por parte dos Seus discípulos. “Posse da terra” está relacionada com a Terra Prometida, sendo equivalente ao Reino de Deus.

Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados.”
Fome e sede de justiça” é uma exigência de vida perfeita, de uma fidelidade maior à Lei de Deus. Quem tem sede de justiça, verá as causas que defende realizarem-se pela mão do Senhor.

Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.”
Deus perdoa a quem usa de misericórdia. Esta implica as obras de misericórdia indicadas em Mt 25, 31-46 e sobre as quais Cristo julgará a humanidade.

Felizes os puros de coração, porque verão a Deus.”
Puros de coração” são os simples e sinceros (muito mais amplo do que castidade ou perfeição moral), coerentes entre o seu agir e as intenções do coração. Ver a face de Deus significa ter a entrada para o Senhor junto de si: feliz o que recusa toda a duplicidade, pois terá com Deus uma intimidade maravilhosa.

Felizes os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus.”
 Pacificadores”: os que trabalham pela paz. Serão chamados filhos de Deus pois imitam Deus, autor de toda a paz (tal pai, tal filho).

2º Bloco

Felizes os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o Reino do Céu.”
Perseguidos”, mas apesar das oposições, cultivarão as virtudes das Bem-aventuranças: a estes Deus quer confiar o Seu Reino. A seguir à Bem-aventurança dos perseguidos em geral, vem a aplicação aos discípulos. Pela sua fidelidade total ao Senhor, os discípulos são convidados à confiança e à alegria e podem esperar uma recompensa grande no Céu. A nona bem-aventurança (v. 11-12) ressoa, assim, como um som novo. Passa-se da perseguição “por causa da justiça” para a perseguição “por minha causa”. Dá-nos a certeza de que o sofrimento suportado por causa de Cristo cria, com Ele, uma solidariedade que garante a salvação.



Exórdio: O Sal e a Luz (5, 13-16);

Após a condição de felicidade dos discípulos anunciada nas Bem-aventuranças, esta passagem fala sobre a responsabilidade de viver segundo os valores do Reino, através de duas imagens: o sal e a luz.

“Vós sois o sal da terra” (Mt 5, 13)
Tal como o sal dá sabor aos alimentos e os conserva, assim também os discípulos se devem comportar no meio da humanidade. Os crentes conferem ao mundo o sabor e a conservação do Reino de Deus mas, se deixam de viver no espírito das Bem-aventuranças, perdem a sua função.

Vós sois a luz do mundo(Mt 5, 14)
A luz surge com duas comparações: como uma cidade sobre a montanha (v. 14) e como lâmpada na casa (v. 15). A cidade-luz lembra a vocação de Jerusalém em Is 60, como futuro centro da reunião das nações, vocação esta realizada graças à fidelidade exemplar de Israel à Lei, pois o Povo eleito estava consagrado como luz das nações (Is 42, 6). Os cristãos assumem esta nova cidade-luz, a Igreja: uma luz sobre o monte, luz que irradia do Pai celeste. A lâmpada na casa refere-se aos discípulos: estes são luz do mundo através das suas boas obras. A comunidade dos discípulos testemunha pelas suas boas obras ou “obras de misericórdia” o Reino de Deus. Por este seu testemunho, a humanidade dará glória ao Pai, descobrirá os valores do Reino e aderirá a eles.