13 de jul. de 2012

V. PAIXÃO E RESSURREIÇÃO

A secção V é o ponto de chegada do Evangelho, onde se realiza a Missão de Jesus de Nazaré, Messias, rei de Israel, Filho de Deus, Salvador do Mundo – a Paixão, a Morte e Ressurreição de Cristo.
O segredo que rodeia a resposta à questão central que o Evangelho propõe, será levantada: Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, pelo próprio perante o Sinédrio, e pelo centurião, ao pé da cruz. É também nesta parte que se verifica um isolamento completo de Jesus, abandonado pelos discípulos na hora da prisão. Porém, as mulheres compensam este abandono, acompanhando Jesus na Sua Paixão até à Ressurreição, assegurando a continuidade do testemunho.
A abundância de citações do Antigo Testamento serve para ajudar o crente, escandalizado pelo sofrimento de Jesus e toda a injustiça cometida, a compreender como esta Paixão pode entrar no desígnio de Deus.
As narrações dos outros Evangelhos apresentam muitas semelhanças com este relato, pelo que se pensa que Mc  pode ser o documento-base.


Mc 14, 1-2: Conspiração dos judeus

A Páscoa Judaica consistia na celebração e recordação da libertação de Israel da escravidão do Egipto, guiados por Moisés e a Aliança feita no deserto do Sinai. A Festa dos Ázimos (ou “pães sem fermento”) estava associada à Páscoa. Existiam dois momentos na celebração da Páscoa dos judeus: a imolação do cordeiro no Templo (no 14º dia de Nisan (Abril), na primeira lua cheia da primavera); comer o cordeiro numa refeição sagrada familiar ou em grupo. Desde o 14 até ao dia 21 não se podia comer pão com fermento.
A Páscoa de Cristo é a redenção que Cristo operou em favor de toda a Humanidade, cordeiro imolado por todos, morrendo e ressuscitando, libertando-nos todos do pecado para a vida eterna.



Mc 14, 3-9: Unção de Betânia

v. 3: Pensa-se que a mulher de Betânia seja Maria, irmã de Marta e Lázaro, amigos de Jesus, pelo que este episódio deve ser diferente do de Lc 7, 36-50, que refere-se a uma pecadora anónima.
v. 6: No Evangelho de São João, a indignação parte de Judas Iscariotes.
v. 7-8: “sempre tereis pobres entre vós”: existirão sempre pobres para ajudarmos, como diz em Dt 15, 11. Perante Deus vivo, que está quase a partir, o acto de Betânia é também um acto de misericórdia, não um desperdício. É louvar e glorificar o Messias que está entre nós, é um acto de fé em Cristo.
O acto da mulher de Betânia é um gesto de reconhecimento de Jesus como o Messias-Rei, algo que não é compreendido pelos discípulos. Jesus vê neste gesto uma antecipação da Sua morte, mas para a glória do Reino de Deus inaugurado na Sua ressurreição.

Mc 14, 10-11: Traição de Judas

Provavelmente, indignado pela situação anterior, Judas decide entregar Jesus. O preço, em Mt, é 30 moedas de prata, o preço que se pagava habitualmente por um escravo.

Mc 14, 12-16: Preparação da Ceia Pascal

Os judeus celebravam a Páscoa na sexta-feira. Os judens de Qumrân seguiam o calendário solar, pelo que celebravam na terça-feira. Esta última deve ter sido a escolha de Jesus.
v. 16: Jesus dá instruções aos seus discípulos sobre os preparativos da Páscoa, ocorrendo sempre tudo como o Mestre indica.

Mc 14, 17-21: Anúncio da traição de Judas

Nesta passagem, Jesus anuncia que vai ser traído. “Aquele que mete comigo a mão no prato.” Judas não é identificado directamente nesta passagem, mas tinha sido indicada a sua traição anteriormente.
v. 21: Embora aparente ser uma condenação, trata-se mais de uma lamentação de Jesus face à infeliz opção de Judas e das consequências da escolha que fez para a sua vida.

Mc 14, 22-26: Instituição da Eucaristia

A Última Ceia terá seguido o ritual da refeição pascal judaica. Durante esta, Jesus institui a Eucaristia, anunciando a Sua morte e ressurreição, inaugurando, assim, a Nova Aliança. Embora não esteja indicado em Mc, em Jo Jesus proclama também o novo mandamento da Lei de Deus, o mandamento do Amor.
Jesus torna-se o Cordeiro Pascal, sacrificado por todos, para nossa salvação. Pela Eucaristia, tomamos parte de Jesus, formando um só Corpo, a Igreja.
v. 22-25: Ao pronunciar as palavras “Isto é o Meu corpo”, “isto é o Meu sangue”, Jesus revela o perfeito conhecimento do sentido da Sua morte – a palavra “corpo” exprime a dádiva de si mesmo, e a palavra “sangue”  exprime a ideia de sacrifício. Mais do que a instituição da Eucaristia, a principal intenção de Mc é a de sublinhar a oferenda de sacrifício de Jesus, senhor da sua morte, ao revelar o sentido da mesma, selando definitivamente a Aliança entre Deus e os homens.

Mc 14, 27-31: Anúncio das negações de Pedro

v. 27-28: O abandono surge aqui como queda e tropeço do homem perante a adversidade. Mas Jesus reunirá todos novamente na Sua ressurreição.
v. 29: Pedro é sempre o primeiro a confessar Jesus. No entanto, nem Ele pode garantir a sua fidelidade a Cristo, pois a sua fé ainda é imatura. Porém, após a fraqueza e a adversidade, Pedro será a pedra onde Jesus fundará a Igreja Santa de Deus.

Mc 14, 32-42: Oração de Jesus em Getsémani

v. 32: Getsémani significa “lagar de azeite”. Situa-se no Monte das Oliveiras, a leste de Jerusalém.
v. 35-36: Jesus debate-se com uma angústia que só os iniciados no sofrimento poderão compreender. Pede ao Pai que afaste d’Ele este cálice, mas sobrepõe a vontade de Deus acima de tudo. Refere-se a Deus como Abbá = Pai, paizinho, um termo aramaico que só os filhos usam para chamar o pai num acto de ternura. Este termo não era usado pelos judeus nas orações. Segundo o exemplo e indicação de Cristo, os cristãos, filhos (adoptivos) de Deus, também se dirigirão a Deus como Pai.
v. 37-40: Os discípulos não conseguiram vigiar e orar, caíram no sono. Quando não estamos atentos, deixamo-nos levar pela letargia, e não escutamos Deus que nos chama.
Este episódio mostra como o homem encontra-se sempre entre duas forças opostas: Deus coloca nele um espírito voltado para o bem, mas ao mesmo tempo, o homem é “carne”, originariamente débil e fraco para resistir ao pecado. A hora do Getsémani é a hora da prova para os discípulos, que só com a força de Deus podem enfrentar. Mas deixam-se dormir e Jesus fica só.







Mc 14, 43-52: Prisão de Jesus

v. 45: O beijo do discípulo ao mestre era um sinal de dedicação – este gesto tornou-se símbolo de traição por Judas.
v. 47: Nos outros Evangelhos, é Pedro que corta a orelha e Jesus cura o criado em seguida. Nesta passagem, é dada a relevância à violência com que vêm ao encontro de Jesus para o prender.
v. 51-52: Pensa-se que o jovem envolto no lençol deveria ser o próprio Marcos, pois este incidente só é descrito neste evangelho. Também pensa-se que este jovem poderá representar a impossibilidade de acompanhar Jesus, entregue nas mãos dos inimigos.

Mc 14, 53-65: Jesus no tribunal judaico

Jesus é interrogado pelo sumo sacerdote Caifás. Jesus assume-se solenemente com Messias, Filho de Deus Bendito, Filho do Homem. Por isso, é acusado de blasfémia e condenado à morte pelo Sinédrio, que não o reconhece como o Messias esperado, não querendo ver a realização das Escrituras em Jesus Cristo.

Mc 14, 66-72: Três negações de Pedro

v. 68-70: Pedro tem medo e, por isso, nega o Senhor. O medo faz parte da natureza humana, só pela fé pode ser ultrapassado. A fé de Pedro encontra-se ainda muito “verde”, mas com todos estes acontecimentos e, sobretudo, com esta experiência, a sua fé vai amadurecer e Pedro será a pedra sobre a qual a Igreja será erguida.
v. 72: Lucas e João relatam que o Senhor fixa os olhos em Pedro e é isso que o leva a cair em si e chorar – o olhar e a bondade de Jesus que aceita a natureza de Pedro, mantendo o Seu Amor infinitamente misericordioso.

Mc 15, 1-5: Jesus no tribunal romano: Pilatos

v. 1: O Sinédrio era constituído por 23 membros de diversos grupos religiosos. Era o Supremo Tribunal que governava a comunidade judaica. Jesus é conduzido a Pilatos porque, durante a ocupação romana, os judeus não podiam aplicar a pena capital, apenas poderia ser feito pelo tribunal romano.
v. 2-5: Jesus não se defende perante Pilatos e não responde perante a acusação. O reino que Jesus anuncia não é deste mundo, por isso, provavelmente, surge a afirmação “Tu o dizes”, como resposta, não admitindo nem negando a acusação de Pilatos.

Mc 15, 6-15: Jesus e Barrabás

v. 7: Barrabás significa “filho do pai”.
v. 11: A multidão pede o indulto para Barrabás, preferindo-o a Jesus.
v. 14-15: Pilatos era o “Prefeito da Judeia”. Num acto de cobardia, apesar de perceber que as acusações a Jesus eram apenas por inveja, decide aceder e mandar flagelar e crucificar Jesus para evitar represálias. A crucifixão era um castigo de origem persa, normalmente aplicado pelos romanos, cartagineses e gregos. A flagelação precedia, normalmente, a crucifixão.
A cruz era já tida como símbolo da vida no Antigo Egipto. Com a morte de Cristo, torna-se o sinal cristão por excelência.

Mc 15, 16-20: Coroação de espinhos

Jesus foi humilhado e magoado, assumindo a missão e o papel que o Pai lhe confiara com sofrimento, em silêncio obediente ao Senhor.

Mc 15, 21-22: A caminho do Calvário

Simão de Cirene transporta a cruz de Jesus, porque este, provavelmente, após a flagelação, já não teria forças para carregar mais (Era apenas levada a parte transversal da cruz, a haste já se encontrava fixa no lugar das crucifixões). A acção de Simão de Cirene também poderá sugerir ao discípulo que este deve participar na paixão de Jesus.
v. 22: “Gólgota” significa “lugar do crânio, em aramaico. Em latim, chama-se “Calvário”. O Lugar do Crânio era uma pequena elevação de terreno fora dos muros de Jerusalém, a poucos metros da cidade.

Mc 15, 23-32: Jesus crucificado e escarnecido

Jesus sofre os suplícios que os profetas anunciavam que o Messias haveria de sofrer. Na narração da Paixão e da Ressurreição, dá-se o clímax da realização e revelação de Jesus como o Messias. Marcos descreve em pormenor o dia da morte de Jesus, distribuindo pelas 4 partes do dia os momentos mais significativos:
*** “Logo de manhã” – primeira hora (6-9h) – sentença do Sinédrio;
*** “Nove horas da manhã – terceira hora (9-12h) – crucifixão;
*** “Meio-dia” – sexta hora (12-15h) – trevas;
*** “três da tarde” – nona hora (15-18h) – morte.
v. 29: Abanar a cabeça era um gesto de desprezo da parte de quem o injuriava. O Senhor era injuriado, segundo Mc, por vários grupos: transeuntes, chefes e até os que também estavam crucificados; em Lc apenas um dos ladrões o fazia. Estas injúrias deixam o crente perante o escândalo da cruz e a fé no misterioso desígnio de Deus.




Mc 15, 33-41: Morte de Jesus

v. 33: Jesus morre às três da tarde, altura da oração da tarde no templo, e é crucificado à terceira hora, quando se reza a oração da manhã, e quando decorre a imolação dos cordeiros pascais: Jesus é o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.
v. 34: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” - Sem quebrar os Seus laços com o Pai, Jesus identifica-se com o Messias sofredor, citando o Sl 22. É o grito do ressurgir da Fé perante um aparente abandono, pois nas dificuldades, ao questionarmos, reencontramos Deus.
v. 38: O véu do templo rasgou-se no Santo dos Santos - a Antiga Aliança antiga cede lugar à Nova Aliança, de livre e fácil acesso, mediante Jesus Cristo, rosto humano de Deus.
v. 39: O título “Filho de Deus” é proclamado pelo centurião, cuja afirmação prova que Jesus é verdadeiramente o Messias. Com o centurião, cumpre-se a Palavra de Jesus: o Reino de Deus será dado aos gentios, a um novo povo.

Mc 15, 42-47: Sepultura de Jesus

A partir deste ponto, as mulheres começam a assumir um papel fundamental como testemunhas da Ressurreição.
v. 42: A Preparação é o dia que precede o Sábado solene da celebração da Páscoa. Costuma remover-se os cadáveres dos supliciados antes do repouso sabático, que começava com o aparecimento das primeiras estrelas.
v. 43: José de Arimateia pratica uma das obras de misericórdia entre os judeus – enterrar os condenados. Em Mc, é simpatizante de Jesus, mas em Jo é mesmo um discípulo.
v. 47: Nesta passagem, as mulheres apenas observam, enquanto José trata de envolver o corpo.

Mc 16, 1-8: As mulheres vão ao sepulcro

v. 1: Como Jesus morreu pouco antes do Sábado, as mulheres só puderam tratar do corpo na altura mencionada.
v. 2: O primeiro dia da semana foi o dia em que começa a criação, e é designado, na linguagem cristã “Dia do Senhor” (Kyriake), porque neste ressuscitou Cristo Senhor.
v. 8: As mulheres sentem o “terror sagrado” perante a presença de um ser divino que lhes anuncia a ressurreição de Jesus.
O relato de Mc termina após este v. 8, sendo que a secção seguinte foi acrescentada posteriormente. Porquê Mc termina o relato neste ponto tão abrupto? Provavelmente, porque o relato estava concluído com o túmulo aberto, pois Jesus já tinha advertido os discípulos da Sua ressurreição na Última Ceia, não sendo necessário o anúncio pelas mulheres. O silencio destas teria, assim, uma dupla função: a sua perturbação face ao sucedido, pois os desígnios de Deus ultrapassam toda a compreensão; o silêncio faz com que a reunião dos discípulos na Galileia e o anúncio do Evangelho após a Ressurreição não se deva às mulheres, mas à iniciativa do Ressuscitado – “depois da minha ressurreição, preceder-vos-ei na Galileia” (Mc, 14, 28).

Mc 16, 9-18: Aparições de Jesus ressuscitado
Mc 16, 19-20: Ascensão de Jesus

Por análise literária e tradução, pensa-se que Mc não é o autor desta parte, tendo terminado abruptamente no v. 8. Existe um outro final de Mc, não canónico e menos antigo:
“Elas (as mulheres) informaram sucintamente Pedro e os seus companheiros de tudo o que lhes tinha sido dito. Em seguida, o mesmo Jesus, através deles, fez chegar do Oriente ao Ocidente a mensagem sagrada e incorruptível da salvação eterna.”
Este excerto não parece ter muita relação com todo o Evangelho. Também pode ser que Mc tenha feito um resumo, ou simplesmente, segundo os seus objectivos, era fundamental revelar Jesus como o Messias, não sendo relevantes as aparições de Cristo ressuscitado aos Apóstolos e o seguimento da história.
Este texto insiste na missão de levar o Evangelho ao mundo inteiro através do testemunho da palavra e das obras e sinais que o acompanham. A eficácia da palavra e dos sinais vem da acção de Jesus, elevado para junto de Deus.
O final de Mc continua a demonstrar a incredulidade e falta de fé: os Apóstolos só acreditam vendo. São enviados ao mundo para levar a Palavra de Deus a toda a humanidade.
O Ressuscitado não abandona o mundo, mas torna-se sempre presente, por meio da acção dos discípulos, estende a Sua acção a toda a parte.



O Evangelho de Marcos é difícil para nós, pois este apresenta-nos o escândalo da fé. Quando guiados por Marcos, refazemos o itinerário da nossa fé e somos insistentemente questionados se compreendemos bem a mensagem. O retrato do homem feito por Marcos é o de alguém que fraqueja, que abandona o Mestre, que duvida. Não é um retrato agradável, mas procura levar-nos à entrega a Deus para ultrapassar todas as nossas limitações pela força da Fé: é o próprio Deus que nos atira para o futuro.