Jesus, inserido no povo de Israel pelo seu nascimento e graças a José, e por meio da sua missão manifestada por João, vai assumir sobre Si a história desse povo e, do deserto, o conduzirá ao Reino de Deus. Por isso, em Mt 4, 17, Jesus proclama que o Reino está próximo.
Prólogo 2 - João Baptista e Jesus (Mateus 3-4,11)
A narração da vida pública de Jesus é introduzida (também em Marcos e Lucas) por três quadros: pregação de João, baptismo de Jesus e tentação de Jesus. José e João Baptista desempenharam o seu papel na preparação de Jesus. José, homem “Justo”, inseriu Jesus na história do povo de Israel dando-lhe o seu próprio nome, levando-o ao Egipto para que se cumprisse um novo Êxodo e designando-O como “salvador” através do Seu nome (Jesus significa “Deus salva” ou “Deus salvador”). João Baptista, cumprindo toda a “justiça”, permitiu a Jesus, pelo baptismo, manifestar a Sua missão para o povo de Israel.
Mateus 3, 1-6: Pregação de João Baptista
Mateus 3, 7-12: Apelo de João à conversão
Tanto João Baptista como Jesus, apesar de tão diferentes, vão realizar a mesma função: ambos são enviados por Deus para mostrar aos homens o caminho da salvação: os seus ministérios seguem um caminho paralelo e os seus discípulos continuarão depois da morte do Mestre, e até com alguma rivalidade, que termina quando as comunidades cristãs dão continuidade ao ministério de Jesus, reconhecendo a plenitude e cumprimento da pregação de João na pessoa de Jesus Cristo.
A diferença entre o Precursor e “Aquele que vem depois” (Mt 3, 11) é sublinhada pelo evangelista: João “baptiza em água para os mover ao arrependimento”. Jesus “baptizará no Espírito Santo e no fogo” (Mt 3, 11). O Espírito é o vento que escolhe o bom e que dá a vida (Mt 28, 19), o que mostra a radicalidade do Baptismo de Jesus em face do simples baptismo na água, que é um baptismo de conversão.
Esta passagem apresenta uma estrutura tripartida:
v. 1-4 => bilhete de identidade de João Baptista: mensagem, enraizamento na Bíblia e modo de vida;
v. 5-7 => resumo da actividade de João Baptista;
v. 7-12 => catequese de João, que se divide em duas partes:
1ª parte: v. 7-10 – rejeita a identidade judaica dos “filhos de Abraão” como salvo-conduto frente ao julgamento de Deus;
2ª parte: v. 11-12 – sublinha o papel de Jesus (“o que vem depois de mim”) na execução deste julgamento divino.
Lendo ao ritmo do texto, por versículo:
1 - A geografia onde decorre a acção é relevante: quando Jesus vem da Galileia ter João, este exerce o seu ministério no deserto da Judeia, sendo a voz que, segundo o profeta Isaías (Is 40, 3) anuncia o novo Êxodo através do deserto. Deste ponto de vista, o rio Jordão tem uma dimensão simbólica, pois a passagem deste rio marcou a entrada na Terra Prometida (Js 3, 14-17). Assim, o baptismo no rio Jordão simboliza a entrada para uma nova vida, o Reino de Deus, através de Jesus Cristo.
2 – A palavra “Convertei-vos” encerra o convite a mudar de mentalidade e de direcção, regressando sem condições ao Deus da Aliança. Mais do que um acto de arrependimento, significa um estado de conversão a Jesus. O termo “conversão” ocorre em contextos onde se faz um convite à mudança (4, 17; 11, 20.21, 12, 41). “Reino do Céu” é equivalente a “Reino de Deus”, mas Mateus evita a segunda designação, por evitar pronunciar o nome divino. Em Jesus, este Reino torna-se mais próximo das pessoas que, por isso mesmo, são chamadas à conversão. Deus decidiu, a partir deste momento, tomar a história do povo nas Suas mãos através do Seu Filho.
3, 4 – Sendo a voz profética no deserto, João Baptista veste-se e alimenta-se à maneira dos profetas, em particular de Elias (2 Rs 1, 8), adoptando uma vida regrada e afastando-se dos costumes sociais de uma civilização considerada pecadora.
6 – O baptismo de João era conferido uma vez só e abarcava uma conversão de vida, preparando o baptismo trazido por Jesus.
7 – A cólera designa a reacção de Deus santo face ao pecado.
8 – Os frutos designam as boas obras que advém de uma conduta íntegra, sendo exigência da conversão, não podendo ser confundida com a ascendência de Abraão. Quem faz a vontade de Deus é o verdadeiro filho de Abraão. Isto põe em causa uma eleição considerada pelos judeus que os salvava automaticamente através da sua ascendência.
11 – Jesus é designado como mais poderoso que João Baptista, tanto que João refere-se ao gesto de descalçar as sandálias, gesto de um escravo perante o seu Senhor. Jesus é posto em relação com a força que se manifesta no dom do fogo do Espírito, que purifica e renova. João situa a sua missão em relação a Jesus, cuja acção será mais radical, através de um julgamento pelo fogo que purifica, o Espírito Santo, a santidade de Deus que exige a santidade do homem.
12 – A imagem da colheita do grão evoca o juízo final, momento em que a boa semente será separada do que não interessa, ou seja, a escolha de quem pode participar do Reino de Deus.
NOTA relativamente às classes sociais:
Os Fariseus eram um grupo de observantes zelosos da Lei.
Os Saduceus estavam ligados às grandes famílias sacerdotais, preocupando-se com a política.
Os Doutores da Lei ou Escribas eram os intérpretes oficiais da Torá, gozam de grande prestígio.
Mateus 3, 13-17: Baptismo de Jesus
Jesus vem da Galileia para ser baptizado por João, e apesar da resistência deste último, que é necessária para que os cristãos aceitassem que Jesus teria sido baptizado por João, Jesus fá-lo porque é a vontade de Deus. É esta atitude de humildade que permite a Jesus receber a sua investidura messiânica (3, 16-17) que o acreditará como Messias perante os futuros cristãos. Esta passagem pode ser dividida em duas partes:
=> 1ª parte: v. 14-15 – debate entre Jesus e o Baptista, em que este recusa baptizar Jesus e confessa a sua submissão; no entanto, Jesus insiste na noção de justiça;
=> 2ª parte: v. 16-17 – dá-se uma teofania – manifestação divina feita a Jesus, em que aparece o Espírito Santo e ouve-se a voz do Pai: esta teofania tem o valor da aceitação do Pai pela atitude da justa submissão adoptada por Jesus; trata-se de uma cena sem testemunhas: é Jesus quem vê o Espírito (“ele viu”); ao mesmo tempo, o evangelista procede a uma designação - “Este é o meu Filho (…)” - que visa directamente o leitor.
Lendo ao ritmo do texto, por versículo:
15 – A “justiça” a que Jesus se refere é a fidelidade nova, obediência total à vontade de Deus. Solidarizando-se com os pecadores pelo baptismo, Jesus manifestava como a sua missão se distanciava do sonho judaico de um Messias triunfante. Antes que Jesus tome a direcção da Sua vida, está de acordo com a vontade de Deus que este Jesus marque a Sua solidariedade com aqueles que, à chamada de João (3, 2), se convertem para que o Reino de Deus chegue. É justo que os baptistas reconheçam um Messias humilde, irmão dos pecadores. Sem o saber, João terá feito o papel de tentador ao tentar desviar Jesus de se baptizar, mas Jesus, ao coagi-lo, recusa subtrair-se à solidariedade, significada pelo Baptismo, com a humanidade pecadora.
16 – Os céus abriram-se, tornando novamente possível o contacto entre o mundo celeste e o dos homens, revelando os projectos de Deus. A imagem da pomba centraliza a cena sobre Jesus. A pomba simboliza o Espírito de Deus voando sobre as águas de Gn 1, 2, evocando a nova criação iniciada na pessoa e missão de Jesus. Também está presente, nesta evocação, a passagem do mar Vermelho: “O Espírito desceu do Senhor e os conduziu (Is 63, 14). Assim, a passagem pelas águas do baptismo inaugura um novo Êxodo, pois Jesus será “conduzido ao deserto pelo Espírito” (Mt 4, 1) e aí vencerá as tentações que teve o povo de Deus. O baptismo de Jesus abre um mundo novo.
17 – A voz vinda do Céu parece dirigir-se não só a Jesus, mas a todos os presentes: trata-se de uma primeira “revelação” à gente que imediatamente vai seguir Jesus e, através desta, a todos os povos. O adjectivo “muito amado”, corresponde à palavra “único”, que lembra Isaac no episódio do sacrifício (Gn 22, 2.12.16). Ao Messsias glorioso junta-se pois a sombra do sacrifício da cruz. Lembra-nos também do Israel do deserto, sobre o qual plana a águia divina, e que é chamado “muito amado” (Dt 32, 11.15). Finalmente aquele em quem “se cumpriu” lembra o Servo profeta (Is 42, 1) sobre quem repousa o Espírito. Esta teofania revela um bilhete de identidade de Jesus: Jesus vai passar pelo deserto e abrir um novo Êxodo, para os filhos muito amados, que realizará as promessas de Deus.
Mateus 4, 1-11: Jesus tentado no deserto
O Espírito impele Jesus ao deserto: Ele vai experimentar o Seu messianismo no encontro com o demónio. A salvação está presente na Sua pessoa, por isso Jesus vai reviver no deserto as tentações do Seu povo durante o Êxodo. Jesus afasta todas as tentações, tendo êxito no caminho que outrora o povo tinha falhado. Ele determina-se livremente, diante da opção que lhe é apresentada: recusa um domínio terreno sobre o mundo, já que a Sua missão consiste em anunciar aos pobres a Boa Nova da salvação. Jesus encarna o novo povo de Deus e encoraja-o à luta contra as tentações fundamentais da vida cristã.
Lendo ao ritmo do texto, por versículo:
2 – O número “quarenta” evoca geralmente uma geração. Aqui evoca o tempo que Moisés passou na montanha (Ex 24, 18), a caminhada de Elias (1 Rs 19, 8) ou os quarenta anos de Israel no deserto.
3 a 10 - O que dispara a tentação é a fome, motivo fundamental na experiência de Israel: Deus “fez-te sentir fome” (Dt 8, 3). Este símbolo, desejo de saciedade, é patente. Daí as três tentações fundamentais: a fome de poder económico (v. 3-4), do poder religioso (v. 5-7) e do poder político (v. 8-10).
4 - O Messias pode mudar as pedras em pães, mas segundo a Bíblia, o alimento essencial é a palavra de Deus.
6 – Ninguém porá Jesus à prova por meio de tentações desmesuradas.
7 – “Tentar Deus” está ligado à desobediência dos Seus preceitos, mas aqui o sentido é abusar de Deus para um fim interesseiro. Esta tentação é de natureza política e a mais feroz. O diabo pretende possuir um poder universal ao propor dá-lo a Jesus. Mas Jesus remete para Deus, o único Senhor perante o qual devemos curvar-nos.
11 - O diabo vencido abandona a cena e os anjos vêm alimentar Jesus atestando, por esse meio, a complacência de Deus face a seu Filho. Ao longo da Sua vida, Jesus foi tentado várias vezes, sendo algumas pelos seus amigos: com Pedro em Mt 16, 23, que recusava a cruz para Jesus; Jesus repeliu o poder económico, escapando após a multiplicação dos pães (Mt 14, 22); recusou o poder religioso, aceitando a Paixão; a discussão com os filhos de Zebedeu é reveladora quanto ao poder político (Mt 20, 20-23). Ao receber esta tradição, Mateus pensa na sua própria Igreja, particularmente nos ministros duvidosos que fazem pesar sobre os crentes a sua ambição económica (Mt 7, 15; Mt 10, 8-9), religiosa e política (Mt 20. 21).
A jeito de conclusão, deixo-vos com um enxerto da homília de Santo Agostinho:
Cristo “transfigurou-nos nele. Lemos no Evangelho que o Senhor Jesus Cristo foi tentado pelo diabo no deserto. Isso mesmo! Cristo era tentado pelo diabo! Em Cristo, és tu que eras tentado, porque Cristo recebeu de ti a sua carne para te dar a salvação; recebeu de ti a morte para te dar a vida; recebeu de ti os ultrages para te dar honrarias; portanto, Ele recebeu de ti a tentação para te dar a vitória.”
Santo Agostinho (340-430), Homilia sobre o salmo 60